Sucessão - Carta a um fundador de empresa


Prezado Fundador,

Para você que já não voltou mais da U.T.I. daquele hospital onde nos vimos pela última vez, e de lá partiu desta sem encaminhar a sucessão da empresa que você fundou, esta carta chega atrasada.

É lamentável, mas de qualquer forma quem sabe ela possa ser útil para outros empresários que ainda estão vivos, correndo de um lado para outro, sem dar-se conta dos riscos que também correm sua saúde e, por extensão, sua família e a empresa. É evidente que foi uma surpresa para todos, pois com a saúde que você sempre teve não se poderia esperar um desfecho daqueles. Mais ainda porque justamente naqueles dias você estava programando umas férias com a família, fato que era uma novidade para todos.

Lembro-me sempre das nossas conversas quando você afirmava categoricamente que “doença e filho drogado eram problemas que só ocorriam na família dos outros”.  Eu apreciava e, porque não dizê-lo, até invejava aquela sua autoconfiança, pois ela transmitia segurança ao seu pessoal, embora em alguns momentos inibisse as reações de sua esposa e filhos.

A imagem que você em vida nos transmitiu, de onipresença, onipotência e rapidez nas decisões contrastavam com as cenas que presenciei em seu velório. Aquela mesma força que nos unia durante a sua vida era agora o fator que nos separava. Já era possível perceber os primeiros indícios de lutas pelo poder por áreas em que você nunca quis tomar decisões, pois eram assuntos de sua exclusividade, Lá estavam seus filhos, genros e noras criando algumas situações constrangedoras para sua esposa, pois discutiam quem ficaria com o que. Por alguns momentos inclusive se referiam a você de uma maneira pouco recomendável para quem estava sendo velado. Eram manifestações do tipo: “O velho foi sensacional, mas agora nos deixou tudo para resolver. “Ele deveria ter feito a divisão ainda em vida”. Ou ainda: “Ele achou que jamais morreria, razão pela qual nunca quis tratar da sua sucessão. Agora, sem a participação dele vai ser mais difícil”. Em outro ambiente, acotovelavam os “velhos de casa “, que nesta altura se julgavam plenos de direitos ou deserdados, conforme a situação pessoal de cada um. Alguns daqueles que sempre desfrutaram das simpatias e preferências estavam agora apreensivos. Os que sempre mereceram o seu desprezo mantinham um olhar de expectativa positiva.

Procurando resumir, diria que se não fosse uma situação de dor e trágica, você mesmo provavelmente estaria se divertindo com aquilo que estava provocando com as pessoas que conviveram boa parte de suas vidas a seu lado. Toda aquela cena era um testemunho muito intenso da sua incapacidade de lidar com uma visão de empresário que desenvolve um empreendimento que ultrapassava sua própria existência.

Acredito que ainda devem estar vivas na sua memória as lembranças de nossas conversas sobre a importância que você se convencesse de que uma empresa deve ultrapassar os limites do seu fundador pois, do contrário, ela não poderá ser considerada uma empresa, mas um negócio pessoal. Entre ambos existem grandes diferenças. Uma empresa se mantém pela existência de uma filosofia organizacional que perdura ao longo dos anos e a torna bem sucedida. Um negócio pessoal é apenas algo como a tentativa de assegurar um futuro tranqüilo e um pecúlio para a viúva. Sei perfeitamente que seus ideais eram mais amplos. Gerador de empregos, compromissos com a comunidade e outros itens faziam sentido para você. O que dificultou foi apenas o fato de que na sua opinião essas preocupações poderiam ser adiadas para quando “a empresa estivesse redonda”. Hoje a gente já sabe que jamais uma empresa está pronta. Ela é uma dinâmica constante, pois quando for considerada “redonda” deve estar obsoleta.

Estou agora recordando uma frase que você gostava de usar ao definir sua empresa: ”Uma empresa como a minha é, essencialmente, um ideal que deu certo”. E era verdade. O início foi duro, pois tudo o que havia era apenas um ideal com muita persistência e garra. Faltavam recursos. Os amigos, a família, os banqueiros, os clientes e os fornecedores não acreditavam no empreendimento. Só você e dois abnegados companheiros seus puseram toda energia e fé no negócio. Foram dias difíceis. Não havia domingo, férias ou qualquer insinuação de querer desfrutar algo das conquistas. Mas foi algo maravilhoso. A família sentia falta de você, mas lá estava sua esposa tratando de compensar sua ausência.

O tempo passou e os negócios cresceram. Mas, apesar de tudo isto, o que ainda se mantinha ao longo de todo este tempo era a incapacidade de desfrutar suas próprias conquistas. Era uma utopia pensar que algum dia você iria parar e começar a descansar, viajar, compartilhar mais tempo com a família e amigos. Sua vida era voltada para o trabalho, pois ele era a própria razão da sua existência. As poucas oportunidades de algum lazer foram consideradas, da sua parte, apenas como uma maneira de recuperar energias para voltar ao trabalho. Muito menos qualquer abordagem de sucessão que implicasse no afastamento gradativo de sua atuação direta nos negócios, ainda que ele implicasse num novo desafio em outra atividade.

Bem, acho que já chegou o momento de encerrarmos nossa conversa, pois estou sendo chamado para mais uma reunião dos seus herdeiros para discutir os destinos da empresa que você fundou.

E a julgar pelas últimas que tivemos, vai ser mais uma experiência de confrontos emocionais e jogos de interesses. Alias, é interessante que, apesar da ausência e impossibilidade de participar, sua presença é constantemente mencionada como algo que seria indispensável.

Confio que tudo continue bem com você, seja lá onde estiver. Apenas recomendo que, caso você esteja com idéias de criar novas empresas neste novo mundo, tome apenas o cuidado de tratar da sucessão ainda em vida. Pode ser doloroso mas, com certeza, dará maiores garantias para o seu próprio sucesso.

Por Renato Bernhoeft.

 

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